O modelo estrutural da mente na teoria freudiana
1 de março de 2023Por Larissa Mallmann F. A. Brandão
Psicanalista e terapeuta
Daniel Paul Schreber, nascido em julho de 1842 e falecido em abril de 1911, foi um jurista alemão que chegou a ocupar a posição de juiz presidente da corte de apelação de Dresden e também autor do livro Memórias de um doente dos nervos, no qual apresenta a narrativa de todo o seu processo psicótico ao ser internado numa clínica para doenças nervosas.
Filho de um famoso médico alemão, a 8 de dezembro de 1884, aos 42 anos, Schreber foi internado na clínica para doenças nervosas da Universidade de Leipzig, dirigida então pelo psiquiatra Prof. Paul Emil Flechsig, uma das maiores autoridades da Psiquiatria e da Neurologia. À época da primeira manifestação, a doença foi diagnosticada por Flechsig como neurastenia e hipocondria, tendo sido recomendando ao paciente tirar férias e a viajar. Em Memórias, Schreber faz menção ao episódio de sua primeira internação, quando teria havido uma crise de hipocondria com ideias de emagrecimento, porém sem qualquer incidente relativo ao sobrenatural.
Contudo, após alguns anos de estabilidade, a psicose eclodiu. Certa manhã, o juiz acordou com o pensamento de que seria agradável ‘sucumbir’ à relação sexual como mulher. Alarmado, Schreber sentiu que aquela ideia não poderia lhe pertencer e chegou a suspeitar que a fantasia teria lhe sido incutida via hipnose pelo Dr. Flechsig. O juiz inclusive considerou a hipótese de que o médico teria invadido telepaticamente sua mente por meio de uma linguagem nervosa desconhecida pelos humanos.
A unidade fundamental das ruminações de Schreber era o que ele chamava de ‘nervos’, que diziam compor a alma humana e a natureza de Deus em relação à humanidade. Cada alma humana era composta de nervos derivados de Deus, cujos nervos eram então a fonte última da existência humana. O pensamento de Schreber de que os nervos de Deus e os da humanidade existiam paralelos um ao outro, exceto quando a ‘Ordem do Mundo’ foi violada, o que constituiu a premissa fundamental das memórias de Schreber, na qual os dois universos experimentaram um “contato nervoso” perigoso entre si.
Schreber chegou a relatar que centenas de almas das pessoas se interessavam por ele e contatavam seus nervos usando raios divinos. Durante uma de suas estadias no asilo de Sonnenstein, o juiz concluiu que existiam ‘homens improvisados fugazes’ no mundo, que ele acreditava serem homens divinamente fabricados, como milagres para proporcionar a Schreber ‘brincar com os humanos’ à luz do um despovoamento do mundo.
Acredita-se que o juiz Schreber teria chegado a sofrer de três distúrbios, sendo o primeiro deles a dementia praecox (“demência precoce” ou “loucura precoce”), mais tarde conhecida como esquizofrenia tipo paranoide; sua segunda doença mental foi descrita em (1893–1902), e não há relato pessoal de seu terceiro distúrbio (1907–1911), mas alguns detalhes podem ser encontrados no prontuário do hospital (no apêndice do livro de Lothane). Durante sua segunda doença, Schreber foi tratado pelo Prof. Paul Flechsig (Clínica da Universidade de Leipzig), Dr. Pierson (Lindenhof) e Dr. Guido Weber (Royal Public Asylum, Sonnenstein).
Inicialmente, Schreber foi tratado em regime hospitalar com os sedativos disponíveis, principalmente barbitúricos, com o objetivo de controlar as alucinações e os permanentes delírios. À medida que sua psicose progredia, ele acreditava que Deus o estava transformando em uma mulher, enviando raios para realizar ‘milagres’ sobre ele, incluindo pequenos homens para torturá-lo.
Em consequência da doença, Schreber perdeu seu cargo de juiz e foi interditado juridicamente de gerir seus próprios bens. Porém, defendendo a si próprio, Schreber procurou demonstrar judicialmente que, apesar de julgar-se um louco, não representava perigo para a sociedade. Schreber venceu o embate jurídico e resgatou os seus direitos, fato extremamente significativo no sentido de desmistificar a ‘loucura’.
Schreber foi liberado de hospitais psiquiátricos em meados de 1902, pouco antes da publicação de seu livro, em 1903. Ele retomou suas atividades particulares, que conduziu até 1907, quando sua mãe faleceu. A psicose continuou progredindo e Schreber foi reconduzido a um hospital psiquiátrico, onde faleceu em 1911, aos 69 anos de idade, após sete anos em estado delirante terminal.
O livro de ‘memórias psicológicas’ de Schreber teve uma importante influência na história da psiquiatria e da psicanálise. Contudo, embora o livro de tenha se tornado famoso no campo da psicologia, o objetivo de Schreber, que era um jurista consumado, estava em travar um debate jurídico acerca da legalidade de manter alguém como ele em um asilo quando ele declara expressamente que deseja sua liberdade. Esse propósito está expresso no subtítulo: “Em que circunstâncias uma pessoa considerada insana pode ser detida em um asilo contra sua vontade declarada?”.
Ao tomar conhecimento dessas memórias em 1911, Sigmund Freud transformou-as em objeto de um dos grandes estudos existentes sobre paranoia.
Embora nunca tenha entrevistado o próprio Schreber, Freud leu suas Memórias e utilizou a complexa sistematização delirante, detalhadamente descrita em seu livro autobiográfico, para basear sua teorização sobre a paranoia.
Em 1911, Freud registrou as suas próprias conclusões sobre o caso de paranoia de Schreber em um ensaio intitulado “Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia (Dementia Paranoides)”.
A partir do caso Schreber, Freud sustentou uma tese inovadora de que o delírio seria uma tentativa de cura por parte do psicótico e que a escuta analítica permitiria definir os mecanismos psíquicos da loucura e possibilitaria ao sujeito buscar saídas para seu intenso sofrimento e seu isolamento.
Segundo Freud, Schereber, durante a primeira fase da doença, quando Schreber estava certo de que Flechsig o perseguiu e fez tentativas diretas de matar sua alma e transformá-lo em uma mulher, o jurista apresentava ‘alucinações de emasculação’. No período seguinte de sua doença, Schereber estava convencido de que Deus e a ordem das coisas exigiam dele que fosse transformado em mulher para que pudesse ser o único objeto do desejo sexual de Deus.
Na linha interpretativa freudiana, a psicogênese dos distúrbios de Schreber seria resultado de desejos homossexuais reprimidos, que na infância eram orientados a seu pai e irmão. Os impulsos internos reprimidos teriam sido projetados no mundo exterior e levaram a intensas alucinações, centradas no médico Flechsig (projeção de seus sentimentos em relação ao irmão) e depois em Deus (que representava o pai de Schreber, Daniel Gottlob Moritz Schreber).
Por fim, a consideração do caso Schreber levou Freud a revisar a classificação recebida de distúrbios mentais, argumentando que a diferença entre paranoia e demência praecox não é clara, uma vez que os sintomas de ambas as doenças podem ser combinados em qualquer proporção, como no caso de Schreber. Com isso, Freud propôs ser necessário introduzir a nova noção diagnóstica de ‘demência paranoica’, que faria justiça a distúrbios mentais polimórficos exibidos pelo juiz.
Referências
FREUD, S. (1911/1987). Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranóia (dementia paranoides). Edição Standard brasileira das Obras psicológicas completas de S. F. Rio de Janeiro: Imago.